são 17h e soube há meia hora que morreu o Vasco Granja.
# tinha 83 anos e a paixão do cine-clubismo.
Trabalhou nos antigos Grandes Armazéns do Chiado, na Tabacaria Travassos e, desde os começos de 60 até se reformar em 1990, na Livraria Bertrand. Auto-didacta, dizia que os balcões da baixa lisboeta foram a sua universidade. Descobriu os filmes experimentais do canadiano Norman McLaren e a sua paixão ganhou contornos para a vida inteira. Integrou o movimento cineclubista da década de 50, dirigiu o célebre Cine-Clube Imagem e, em 1958, começou a escrever os primeiros artigos em Portugal sobre cinema de animação. Foi, aliás, o primeiro a utilizar o termo “banda desenhada” num artigo publicado pelo Diário Popular em 19 de Novembro de 1966. Militou no PCP e foi várias vezes preso pelo Estado Novo.
Incansável, escreveu e traduziu, fundou, lançou e participou. Incentivou publicações, organizou colecções, criou fanzines, mobilizou clubes, inaugurou associações. Dinamizou mostras nacionais e participou nos mais prestigiados festivais internacionais do género animado, começando por ser o único garante da presença de um 'olheiro' português e, mais tarde, convidado a integrar diversos júris.
Depois do 25 de Abril de 1974, manteve durante 16 anos um programa regular sobre cinema de animação na RTP, com o qual a minha geração cresceu e que se tornou um clássico da história televisiva em Portugal, com mais de 1000 emissões.
Magro, calvo, de rosto ovalado e com uns dentinhos de coelho a espreitarem sonhadoramente por entre os lábios em esgar de permanente sorriso, inabalável a qualquer impaciência que o seu gosto de vanguarda pudesse suscitar aos que, como nós queriam mais Walt Disney, mais Hanna Barbera e menos filmes do experimentalismo checo, húngaro e búlgaro, Vasco Granja nunca arredou pé da missão estóica que cultivava: divulgar a paixão pela a banda desenhada e pelo cinema de animação, que lhe animavam a vida. Para a geração de 70 foi, ainda que a preto e branco, o único apontamento de cor a pensar também «nos mais novinhos» (como gostava de dizer), numa época em que a televisão só tinha dois canais, ambos sisudos e cinzentões.
Por anos a fio, suportava-se ansiosamente o dominicalíssimo 70x7 e a TV Tural do Engº Sousa Veloso, só para o ver chegar, sempre com as mesmas entradas: «Olá, amiguinhos. Hoje trago-vos aqui um bonito filme do conhecido realizador...» e lá vinha um daqueles nomes incompreensíveis, invariavelmente ligados à escola do Leste, que trazia sempre na ponta da língua. Uma memória jurássica que nunca hesitava, nunca o atraiçoava sequer ao ponto de lhe atrapalhar as palavras na fala e que, ironicamente, o 'mal de alzheimer' veio desafiar-lhe nos últimos anos de vida.
É verdade que tinha uma voz pausada e que as frases se lhe arrastavam numa melopeia tão característica como monocórdica, é verdade que o homem que nunca escondeu o quanto gostava de ter sido o Tintin era tudo menos o que hoje se considera 'telegénico', mas para nós que nascemos nos anos 70 foi um cúmplice de infância decisivo. E para Portugal também. Porque ninguém como ele foi tão indefectivo na divulgação sistemática das grandes escolas internacionais do género animado.
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February 2010
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